A FALTA DE INVESTIMENTO NA INFÂNCIA

RETROSPECTIVA DE CASOS MARCANTES ENVOLVENDO CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM 2020

A falta de investimento na infância é visível após 30 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)[1]. O país falha ao tratar a infância como política prioritária e em proteger os menores da violência.

O Brasil é um dos países mais perigosos para a infância e, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 32 (trinta e duas) crianças e adolescentes são assassinados todos os dias no Brasil [2].

Os dados supramencionados são assustadores e alarmantes. A alta exposição de menores à violência é uma das principais falhas de implementação do ECA, segundo um de seus idealizadores, Mário Volpi.

 Nesse contexto, com o fim do ano se aproximando, iremos fazer uma retrospectiva de três casos marcantes que envolveram crianças e adolescentes no Brasil em 2020, vejamos:

1 – Caso Miguel Otávio

O menino Miguel Otávio, de 05 (cinco) anos de idade caiu do 9º andar do edifício Píer Maurício de Nassau, no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife, no dia 2 de junho. A queda aconteceu após a mãe deixá-lo com Sari Corte Real, para passear com Mel, a cadela da família que a empregava na época.

As investigações e as imagens das câmeras de segurança apontam que a criança saiu do apartamento para procurar a mãe até os elevadores do condomínio. Sari acionou a tecla do elevador que dá acesso a cobertura, saindo em seguida.

Acontece que o elevador parou no 9º andar, e a criança seguiu em direção a um corredor. Depois, parou na frente da janela da área técnica, escalou um vão e alcançou uma unidade condensadora de ar, escalou algumas grades, se desequilibrou e caiu.

Atualmente, existem três processos na justiça contra Sari e contra o prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker, sendo um processo criminal, da morte de Miguel, após denúncia por abandono de incapaz com resultado morte, com agravantes de cometimento de crime contra criança em ocasião de calamidade pública, ofertada pelo Ministério Público, com a conclusão das investigações policiais.

A audiência de instrução e julgamento de Sari Corte Real, primeira-dama de Tamandaré, está prevista para acontecer no dia 03 de dezembro, na 1ª Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente, às 9:00 hs, e a maior preocupação, é garantir que todas as testemunhas compareçam à audiência.

Na audiência é esperado que as testemunhas confirmem o que foi informado na delegacia. Caso a audiência ocorra com a presença de todas as testemunhas, o juiz abre um prazo para que as partes envolvidas peçam alguma nova diligência – a produção de uma prova que ainda não foi produzida no processo. Caso não haja, é aberto um prazo para as alegações finais da acusação e da defesa.

Neste momento, caso o Ministério Público entenda que há provas de que Sari Corte Real cometeu o crime, ele pede a condenação. A defesa, por sua vez, vai pedir para absolver a Ré ou mesmo para que ela seja condenada por outro tipo penal, por exemplo. 

Cumpre ressaltar que o crime de abandono de incapaz com resultado em morte tem pena de quatro a 12 anos de prisão e, por agora, Sari aguarda o julgamento em liberdade provisória após ter sido presa em flagrante e liberada após pagar R$ 20.000,00 (vinte mil reais) em fiança. 

 Um processo tramita na esfera trabalhista, referente ao vínculo de emprego que deixou de ser formalizado pelo trabalho doméstico da mãe e avó de Miguel na residência do casal. Elas constam como titulares de cargos comissionados na prefeitura de Tamandaré, sem nunca sequer terem prestado serviços àquele município.

O terceiro e último processo diz respeito a ação cível, de indenização por danos morais e materiais, pedido de quase 01 (um) milhão de reais, em virtude dos reflexos sofridos pelos pais e avós do menino Miguel.

O caso ganhou repercussão nacional, com manifestações de políticos, artistas na internet e criação de um abaixo assinado virtual com mais de 2,5 milhões de assinatura pedindo justiça.

As notícias mais recentes do caso apontam que Mirtes Renata Santana de Souza, mãe de Miguel Otávio, decidiu assumir um novo desafio: o de cursar Direito a partir de 2021, no Recife, para se tornar advogada.

“Me vi nessa missão. Meu filho me deu o dever de ajudar o próximo”, afirmou. Segundo ela, o luto pela morte do filho trouxe a determinação para começar uma nova carreira, além da força para enfrentar preconceitos. “Eu já estou preparada para os desafios. Pode ser que eu passe por algum preconceito, mas já estou passando por coisas piores. Nada se compara à dor que estou sentindo”, declarou. Ressalta-se que as informações são do portal G1, com quem Mirtes conversou[3].

Na justiça brasileira, não é possível prever o que vai acontecer, mas fundamental que a sociedade civil se mantenha atenta ao caso.

2 – Caso Isabele Guimarães Ramos

A adolescente Isabele Guimarães Ramos, de 14 anos, foi morta com um tiro de pistola 380, na noite do dia 12 de julho, quando foi convidada pela colega, que tem 15 anos, para fazer um bolo.

As meninas moravam em um condomínio de luxo em Cuiabá e Isabele costumava frequentar a casa da amiga. Há suspeita de que a cena do crime foi modificada, pois duas testemunhas relataram, durante oitivas, que a limpeza do espaço em que o corpo estava – a suíte de um dos quartos do imóvel – era incompatível com o local de uma morte com tiro na cabeça, pois há grande derramamento de sangue.

Além disso, testemunhas relataram que a arma de onde partiu o disparo que atingiu Isabele não estava no local próximo e outros armamentos, que estariam em uma mesa, foram recolhidos durante a chegada do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Isabele morreu antes de receber socorro.

Vale ressaltar que as duas famílias, a da adolescente que disparou, e a do namorado dela praticam tiro esportivo.

Já no inquérito que investigou a morte de Isabele Ramos, a adolescente apontada como autora do disparo foi indiciada por ato infracional de homicídio doloso, imprudência e imperícia. Por ser menor de 18 anos, caso seja condenada, o Estatuto da Criança e Adolescente permite apenas três anos de internação.

A adolescente apontada como responsável pela morte, conseguiu habeas corpus para que seja liberada de cumprir medida socioeducativa. A decisão da Justiça foi tomada um dia depois da internação dela, após a defesa alegar que a medida é ilegal.

Neste mesmo inquérito, o pai da adolescente foi indiciado por homicídio culposo, posse ilegal de armas, fraude processual e entrega de arma para menor de 18 anos e resultado morte. Ele foi preso em flagrante por posse e porte ilegal de arma de fogo depois que a polícia encontrou um arsenal com seis pistolas na residência dele. O empresário pagou R$ 1.000,00 (mil reais) de fiança para responder em liberdade provisória.

O namorado da adolescente, que tem 16 anos, que levou a arma para a casa dela vai responder ao ato infracional análogo a porte ilegal de armas. Já o pai dele foi indiciado por deixar arma de fogo ao alcance de menor de 18 anos

3 – Caso Danilo Sousa Silva

Danilo Sousa Silva, de 7 anos, desapareceu no dia 21 de julho. Segundo o relato da família à Polícia Civil, ele brincava na porta de casa, entrou e disse à mãe que iria à casa da avó, mas nunca chegou lá. O corpo do menino foi encontrado no dia 28, em uma área de brejo, lama, em uma mata a cerca de 100 metros de onde ele morava, no Parque Santa Rita, em Goiânia

As investigações apontaram que o padrasto de garoto tinha aversão a Danilo e aos outros dois enteados. Segundo a Polícia Civil, depoimentos de vizinhos e outras pessoas próximas à família relataram episódios em que o homem demonstrava não ter uma boa relação com o garoto.

De acordo com os investigadores, o padrasto teria contado com a ajuda de “Hian” para cometer o crime. O jovem confessou o assassinato do menino e disse que receberia uma moto e um carro como pagamento pela ajuda. Ele também levou os policiais até a obra onde o pedaço de madeira que teria sido usado no crime estava escondido. Dois paus foram encontrados e estão sendo periciados.

Os dois foram presos em flagrante pelo crime de ocultação de cadáver em conexão com homicídio qualificado. As prisões aconteceram em Abadia de Goiás, na Região Metropolitana de Goiânia.

O padrasto também responde na Justiça por tentar matar a mãe da criança a facadas em outra ocasião. À época, ele chegou a ser preso.

O assassinato do menino Danilo de Souza mexeu com a cidade de Goiânia, no estado de Goiás. 

Observa-se que as tragédias anunciadas acima bem como todas as outras que não foram citadas, mas que ocorrem diariamente, mostram o rastro de tristeza vivenciado pela família das vítimas e que comovem toda sociedade.

Os casos supramencionados nos colocam a refletir sobre a infância e a compartilhar as marcas profundas e as dores das mães que perdem seus filhos tão precocemente em virtude de tragédias.

Infelizmente muitos brasileiros sofrem com o aparente descaso das autoridades, com a transparente tentativa de obstrução de justiça, ocultamento de provas e da inércia da lenta legislação.

O tempo vai passando, advogados renomados são contratados, policiais amigos dos agressores surgem como preparadores de cenas do crime e os culpados tentam, usando brechas jurídicas, se safarem do hediondo crime cometido… A sociedade assiste essa prática comum, pela falta de incentivo à infância.

Ademais, o uso de armas de fogo, tão debatido pela política, coloca em questão se sua eficácia no combate ao crime das crianças e adolescentes e proteção da infância tem validade, sentido ou necessidade de ser aplicado.

Miguel, Isabele, Danilo e tantas outras crianças e adolescentes tinham uma vida inteira pela frente, porém, tiveram seus sonhos interrompidos. Famílias foram desoladas e ainda possuem muito a esclarecer por seus algozes.

Desta maneira, não há dúvidas de que os direitos da criança e do adolescente, bem como a proteção à infância feliz e saudável são de responsabilidade de todos os adultos.

Assim, a família, a sociedade e o Estado são reconhecidos explicitamente como as instâncias que devem garantir os direitos apresentados no Estatuto da Criança e Adolescente e nas legislações pertinentes [4].

Como família, devemos entender que se trata da primeira instância, já que é ali que a criança recebe sua atenção básica e natural da infância. Ao Estado e à sociedade cabe garantir as condições para que a família exerça sua função, para que não tenha todo o ônus e responsabilidade.

Quando a própria família não assegura a proteção à criança e ao adolescente, ou pior, como vemos em alguns casos praticar violência contra crianças, cabe a essas duas instâncias garantir que a lei possa ser aplicada.

Portanto, não há dúvidas de que estamos vivemos um momento muito complexo na situação dos direitos da infância. Precisamos de mais investimentos do governo federal no apoio aos estados e municípios para o cumprimento dos seus diferentes papéis.

Sem dúvidas, esse momento de pandemia [5] é um momento fundamental para retomar esse diálogo muito importante. O grande impacto da pandemia será sobre as crianças, especialmente das famílias mais vulneráveis. Vemos crianças sem acesso à internet que não estão recebendo os conteúdos escolares, o que é uma situação grave. Há crianças em casa sujeitas a uma série de abusos e maus-tratos. Muitos adolescentes e jovens perderam o emprego.

No âmbito do governo federal e dos governos estaduais, é muito urgente se abrir um diálogo para reposicionar as políticas da infância como políticas prioritárias. Trata-se de alocar recursos para investimentos em educação, saúde e assistência social. O melhor critério para avaliarmos se a criança é uma prioridade é o orçamento público. Esse é um grande desafio que o Brasil precisa enfrentar: investir mais nos direitos da infância.

Destarte, a vida de cada família é marcada por trajetórias pessoais, e quanto mais presentes à sociedade e o Estado se fizerem nessas trajetórias, dando condições para cada um realizar o seu potencial, mais o país vai se desenvolver. A falta de investimento na infância é uma tragédia e almeja-se no ano de 2021 e nos demais anos que se seguirem, que sempre seja feita a JUSTIÇA!

O Poema abaixo retrata bem os direitos das crianças e conclui tudo o que fora exposto:

“Toda criança no mundo

Deve ser bem protegida

Contra os rigores do tempo

Contra os rigores da vida.

Criança tem que ter nome

Criança tem que ter lar

Ter saúde e não ter fome

Ter segurança e estudar.

Não é questão de querer

Nem questão de concordar

Os direitos das crianças

Todos têm de respeitar. ”

(Direito das Crianças – Ruth Rocha)

Por Talita Fernandes

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