AS FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS

A família homoafetiva é a entidade familiar caracterizada pela união de pessoas do mesmo sexo que se baseia no afeto, amor, respeito e comunhão de vida. O reconhecimento dessa figura jurídica merece atenção e proteção por parte do Estado, assim como os demais arranjos familiares.

Sabemos que o conceito jurídico de família [1] se transformou ao longo dos anos [2], e o modelo único formado pelo casamento foi substituído pela pluralidade de formas, tendo como plano de fundo a afetividade de seus membros.

O termo homossexual tem origem etimológica grega, onde o prefixo homo tem o significado de semelhante, onde podemos perceber que o vocábulo foi instituído para designar o interesse por pessoa do mesmo sexo.

Entretanto, mesmo estando presente no seio social humano desde os mais remotos tempos, a prática homossexual na sociedade moderna foi, durante vários anos, caracterizada como doença mental, constando inclusive no Código Internacional de Doenças – CID.

Conforme palavras de Mascotte:

Assim como na sociedade, no campo científico, o conceito de homossexualismo também sofreu alteração. Em 1985, deixou de constar a homossexualidade no art. 302 do Código Internacional das Doenças – CID – como uma doença mental. Na última revisão, de 1995, o sufixo “ismo”, que significa doença, foi substituído pelo sufixo “dade”, que significa modo de ser.”[3].

Desse modo, pode-se perceber o esforço dos campos de estudo científico em afastar as abordagens preconceituosas e aproximar a homossexualidade da discussão cotidiana dos seres humanos, por ser uma realidade já observada há muito tempo.

Por óbvio que a simples alteração da terminologia e do uso do vocábulo não passa a conferir à homossexualidade a aceitação social esperada, entretanto demonstra um avanço no sentido de desvencilhar-se dos significantes pejorativos e denegridores, passando à adoção do termo que melhor se adequa a seu sentido íntimo de ser um fator inerente ao modo de vida do ser humano.

Nesse sentido, vale ressaltar sobre as práticas homossexuais nas sociedades mais antigas, pois ahomossexualidade sempre existiu na história da humanidade, sendo encontrada desde os povos selvagens, como também nas antigas civilizações, conhecida pelos romanos, egípcios, gregos e assírios. 

E mais, nas sociedades antigas, a homossexualidade não somente era admitida como prática comum, como era por vezes aclamada e incentivada, especialmente por aqueles que constituíam as camadas com mais destaque social, tais como os militares e intelectuais.

Cumpre ressaltar que a homossexualidade passou a ser encarada como um fato social atípico e reprovável a partir da ascensão da doutrina cristã, que afirmava ser essa prática um vício de caráter que deveria ser afastado por todos aqueles que desejassem viver no reino dos céus.

Porém, além da evolução das formas de constituição familiar, deve-se atentar para a evolução no tratamento das relações homossexuais, as quais serão referidas como homoafetivas, segundo preceito estabelecido por Maria Berenice Dias, de que o afeto é o elemento norteador de toda e qualquer relação familiar, especialmente as formadas por pessoas do mesmo sexo.

Neste histórico de admissibilidade e reconhecimento, a Dinamarca foi o primeiro país a reconhecer a união de homossexuais. Em 1989, o Parlamento aprovou um projeto de lei que autorizou o registro de uniões homossexuais, com os mesmos efeitos legais do casamento.

Sendo assim, conferiu aos casais homoafetivos direitos nas áreas previdenciária, trabalhista e de sucessões, permitindo, inclusive, a troca de sobrenomes entre os companheiros. Deficitária somente a questão de filiação, pois não autorizou a adoção de crianças por esses casais.

A Noruega, no ano de 1993, editou a Lei 40/93, que prevê a possibilidade de registro da união civil homoafetiva.

Na Suécia, a evolução se deu aos poucos, primeiramente, em 1987, o Parlamento foi a favor da concessão de benefícios à parte menos favorecida da relação homossexual, criando assim o Homossexual Cohabitants Act. Posteriormente, em 1995, houve a concessão da oficialização concedendo os mesmos direitos que já constavam na lei dinamarquesa, através do paternariat, que oficializou os laços afetivos entre pessoas do mesmo sexo.

No mesmo sentido, no ano de 1996, a Islândia também oficializou as uniões afetivas entre homossexuais. Ainda no mesmo ano, a Constituição da África do Sul foi a primeira a proibir, explicitamente, a discriminação em razão da orientação sexual, elevando ao status de garantia constitucional o direito à opção sexual.

A França, em 1998, aprovou o Pacto Civil de Solidariedade (Lei n. 99.944/99) entre pessoas do mesmo sexo, garantindo direito à sucessão, imigração e declaração de renda conjunta, sendo a primeira nação católica a reconhecer legalmente essas uniões.

No ano de 1999, o Supremo Tribunal Inglês reconheceu o status de família às relações homoafetivas estáveis embora não sejam permitidas demonstrações públicas de afeto entre pessoas de mesmo sexo.

A Holanda, por sua vez, foi o primeiro país a autorizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, em 2001, outorgando-lhes os mesmos direitos do casamento contraído entre heterossexuais,

Já a legislação portuguesa reconhece desde 2001 a união entre pessoas que vivem juntas há dois anos, independentemente do sexo, sendo que a adoção por parte de pessoas homossexuais não é permitida.

Na Bélgica, a lei que autoriza os matrimônios entre homossexuais entrou em vigor no dia 01º de junho de 2003, sendo aplicada aos estrangeiros desde fevereiro de 2004. Para que a união seja válida, basta que um do casal seja belga ou resida na Bélgica. Lá os casais homossexuais possuem os mesmos direitos dos heterossexuais, especialmente em matéria de herança e matrimônio, entretanto também ainda não podem adotar.

Na América Latina, o primeiro país a permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo foi a Argentina, o governo de Buenos Aires permite as uniões civis de casais homoafetivos desde o ano de 2003.

A Espanha, em 2005, aprovou projeto de lei que legaliza o casamento entre companheiros homossexuais, conferindo a essas uniões tratamento idêntico ao das heterossexuais, inclusive no que concerne à herança, pensão e adoção. Com isso, a Espanha é o primeiro país a autorizar expressamente a adoção por casais homossexuais.

A partir da exposição supramencionada, é fácil perceber que o Brasil, embora tenha um avanço no tratamento patrimonial dos casais homoafetivos, ainda se encontra afastado da vanguarda do Direito de Família, que cada vez mais tende a regulamentar a realidade social, afastando os ideais impostos e aproximando o ordenamento dos fatos que ocorrem no seio da sociedade.

Logo, esclarece-se que ainda não há no Brasil legislação específica que trate das uniões homoafetivas e nem mesmo previsão constitucional de existência destas, o que demonstra o caráter ainda conservador do nosso Estado.

Conforme afirmado acima, as uniões entre pessoas do mesmo sexo já encontram total fundamentação quando se tratam de direitos patrimoniais, pois são reconhecidas como sociedades civis de fato.

Entretanto sua natureza é fundamentalmente de família em sua moderna acepção, de entidade constituída por pessoas tendo por base principal o afeto [4].

Na prática, a falta de regulamentação abre espaço para o preconceito, embora saiba-se que o Direito não tem o condão de estabelecer todos os comportamentos da vida em sociedade.

A partir da noção de que a família tem como base o afeto, confiança, segurança, conforto e bem-estar necessários ao desenvolvimento da pessoa, novas formas de constituição familiar foram sendo reconhecidas pela legislação pátria.

Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 dispôs, em seu artigo 226caput, que família é a base da sociedade, recebendo especial proteção do Estado, na sua forma plural.

Como se observa em seu artigo 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (Grifo nosso).

Apesar do avanço nas disposições normativas que tratam sobre o tema, o texto constitucional retratou apenas um rol exemplificativo de família, fixando-se no casamento e união estável entre homem e mulher.

O que demonstra o nível de marginalização imposto às uniões entre pessoas do mesmo sexo, que não encontram reconhecimento nem mesmo no instituto da união estável, uma vez que o texto constitucional estabelece que este arranjo familiar é reconhecido entre homem e mulher.

Porém, a nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal (art. 1º, III) consagra, o respeito à dignidade da pessoa humana[5].

Assim é que, como já afirmado anteriormente não se pode falar em aplicar analogicamente o artigo 226, § 3º da nossa Lei Maior com o intuito de proteger e regular as uniões homoafetivas, uma vez que há expressa previsão da diferença de sexo entre aqueles que constituem união estável.

Porém, diferentemente, a fundamentação constitucional para a proteção da família homoafetiva reside em princípios, tais como os da dignidade da pessoa humana, liberdade e vedação ao preconceito em função de etnia, crença, cor ou sexo, promovendo assim a defesa da liberdade de orientação sexual.

Em sequência, o Código Civil de 2002, de igual forma, ignorou a existência das relações homoafetivas ao “pretender” colocar como imprescindível a diferença de sexo entre os conviventes. ” 

A falta de regulamentação das uniões e relações homoafetivas dentro do ordenamento jurídico brasileiro por óbvio não constitui expressa proibição destas, entretanto, as põe à margem da sociedade, sendo como que “fantasmas” dentro do Direito de Família.

Em 2006, foi editada a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), com mecanismos para coibir a violência doméstica contra a mulher, modo expresso, enlaça as relações homossexuais.

No artigo 2º da referida lei, afirma-se: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual […] goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”.

O parágrafo único do artigo 5º também afirma que “independem de orientação sexual todas as situações que configuram violência doméstica e familiar”.

Desse modo, podemos perceber o avanço com a Lei Maria da Penha, no que concerne aos direitos de homossexuais, ver reconhecida pela primeira vez, expressamente, a união homoafetiva como entidade familiar, buscando a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nota-se, a partir desta regulamentação, que as uniões homoafetivas devem ser consideradas como entidades familiares, na sua mais ampla acepção, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, sendo inclusive, regida desde então pelo Direito de Família, abandonando o Direito das Obrigações e seu reconhecimento como simples sociedade de fato.

Aliás, embora a referida lei tenha como finalidade primordial proteger e difundir os direitos das mulheres, como categoria oprimida historicamente dentro do seio social brasileiro, no que concerne ao reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, há que se dar entendimento o mais amplo possível, visando abarcas todas as formas de família constituídas por pessoas do mesmo sexo.

Ademais, merece grande destaque para o judiciário brasileiro a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu, em 2011, a união estável para casais do mesmo sexo.

Posteriormente, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicou uma resolução (nº 175, de 14 de maio de 2013), permitindo que os cartórios registrassem o casamento civil de casais homoafetivos.

Os direitos da união homoafetiva são os mesmos. Com o casamento ou com a união estável, o cônjuge tem direitos como declaração conjunta de imposto de renda, pensão alimentícia, herança e pensão por morte, por exemplo.

Sobre a adoção de crianças por casais homoafetivos, mais uma vez informa-se, que não há lei específica. O Estatuto da Criança e Adolescente, que traz as regras para a adoção, não faz nenhuma referência a gênero [6].

Por fim e não menos importante, a aprovação da redação do Projeto de Lei nº 6583/2013, denominado Estatuto das Famílias, define a família como “o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher”.

O não reconhecimento das uniões do mesmo sexo, conforme o Estatuto das Famílias, contraria além dos preceitos fundamentais da igualdade, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, também a segurança jurídica.

Vale ressaltar que todos esses direitos estão anunciados dentre os princípios e garantias fundamentais da Constituição brasileira e, são reconhecidos pela doutrina e jurisprudência do nosso sistema jurídico-legal.  Aliás, é de suma importância o pilar de sustentação do Direito de Família, qual seja, o afeto.

A aprovação do Estatuto das Famílias destrói o progresso alcançado pelo direito brasileiro, através de julgados reconhecendo a união homoafetiva, representando o mencionado Projeto de Lei, o retrocesso. Diante disto, a sociedade não merece uma leitura homofóbica da Constituição Federal.

Portanto, o Poder Judiciário ao reconhecer a união homoafetiva, fazendo valer os ditames constitucionais e os princípios norteadores do Direito de Família, demonstrou o amadurecimento e a progressão do Direito diante da realidade social.

Já era tempo das uniões estáveis homoafetivas serem reconhecidas e obter a proteção em nossa jurisprudência e doutrina recentes, tendo o afeto como o principal fundamento das relações familiares.

Com tudo isso, percebemos que não tarda o dia em que as uniões entre pessoas do mesmo sexo serão naturalmente tratadas pelo Direito como famílias homoafetivas, o que reflexamente levará a nossa sociedade não somente a aceitar, mas muito mais a respeitar a orientação sexual de todos os cidadãos, preconizando sempre um dos maiores princípios constitucionais, qual seja, o da dignidade da pessoa humana.

Por Talita Verônica

Capa: Revista Claudia


[3] MASCOTTE, Larissa. As uniões estáveis homoafetivas e o Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2199, 9 jul. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13116>. Acesso em: 24 fev. 2009

[5] DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, o Preconceito e a Justiça. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 45).

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