Abandono afetivo e as consequências na vida das crianças.
Quando falamos em família, o que se passa na nossa mente é amor, afeto, abrigo, é difícil ter que destacar que a justiça acaba sendo procurada para resolver situações em que os pais não são presentes na vida dos filhos.
E essa situação se encaixa perfeitamente dentro de um cenário do abandono afetivo, você já ouviu falar sobre esse tema? Você sabe o que é abandono afetivo?
O abandono afetivo consiste na omissão de cuidado, educação, assistência moral e psíquica, além da ausência sobre o direito de convivência familiar, que os pais tem com os filhos.
O mestre Rodrigo Cunha, destaca: “O abandono afetivo é a expressão usada pelo Direito de Família para designar o abandono de quem tem a responsabilidade e o dever de cuidado para com um outro parente”.[1]
Quando destacamos o abandono afetivo, não estamos falando se o genitor paga ou não a pensão alimentícia ou contribui financeiramente na vida do filho.
Os pais acreditam que cumprindo com a sua obrigação de pagar a pensão alimentícia é o suficiente para ser presente na vida da criança. Contudo, não é somente isso que importa nas relações familiares, uma vez que, o abandono afetivo é tão grave quanto o abandono material.
Nesta perspectiva, a responsabilidade com os filhos possui amparo em Lei, conforme destaca o artigo 227 da Constituição Federal:
Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.[2]
Esse artigo, destaca que é dever da família, garantir com absoluta prioridade a convivência familiar, e dessa convivência surge o affectio no qual significa um sentimento carinhoso em relação as crianças.
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, vem reforçando aquilo que foi colocado na Constituição Federal, consoante evidencia o artigo 4º do ECA:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.[3]
É bem nítido que a todo momento a Lei, vem resguardando e preservando o melhor interesse da criança, garantindo uma convivência familiar para um desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes.
Nesta nuance enfatiza o renomado professor Rolf Madaleno (2018):
“Portanto, amor e afeto são direitos natos dos filhos, que não podem ser punidos pelas desinteligências e ressentimentos dos seus pais, porquanto a falta deste contato influencia negativamente na formação e no desenvolvimento do infante, permitindo este vazio a criação de carências incuráveis, e de resultados devastadores na autoestima da descendência, que cresceu acreditando-se rejeitada e desamada.”
É importante esclarecer que a ninguém é imposto o dever de amar, entretanto, a relação parental é sim, uma obrigação jurídica e moral sobre o dever de proteção perante o filho.
O tema abandono afetivo não tem uma Lei especifica sobre o assunto, nada obstante, encontra sustentação jurídica por meio de jurisprudência no qual será destacado ao longo do texto.
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS EM RAZÃO DO ABANDONO AFETIVO
O direito de família está em constante evolução, e com isso o tema abandono afetivo ganhou bastante repercussão e posições jurisprudências favoráveis ao assunto.
Nas palavras de João Ricardo Aguirre: atentos à nova realidade que vivemos em tempos atuais, faz-se necessária a adequação dos fundamentos da responsabilidade civil à realidade pós-moderna, com vistas à promoção do atendimento às vítimas de danos. (AGUIRRE, 2019, p.11).
Não é possível compensar uma criança sobre o fato do pai ou da mãe não ser presente na vida dele(a), essa dor não tenho dinheiro no mundo que preencha esse vazio.
Contudo, alguns juristas defendem que é possível a indenização por abandono afetivo.
O abandono afetivo tem sido causa para várias discussões perante o judiciário, e inúmeras decisões estão considerando o abandono afetivo, um ato que pode gerar direito a indenização.
O dever de indenizar tem o objetivo de punir os genitores por serem omissos em relação ao cuidado, educação, assistência moral e psíquica ao filho.
Além disso, serve como forma de alertar aos outros pais, que essa omissão de afeto, cuidado e amor pode gerar direito a indenização e criar situações psicológicas irreversíveis na vida da criança.
De modo geral, com a constitucionalização da família, a figura do afeto: segundo o doutrinador Paulo Lobo:
“não como fato psicológico ou anímico, mas como um dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles.
Podemos referir a dever jurídico de afetividade oponível a pais e filhos e aos parentes entre si, em caráter permanente, independentemente dos sentimentos que nutram entre si, e aos cônjuges e companheiros enquanto perdurar a convivência” (LOBO, 2008 p. 48)
É importante destacar que existem posicionamentos diferentes sobre o assunto, porém se trata de entendimento jurisprudencial de mais de um Tribunal, os quais passam a impor ao pai ou a mãe o dever de pagar indenização ao filho a título de danos morais.
É necessário esclarecer, que o afeto se trata de um bem jurídico, visto que, é dever dos pais prestarem assistência aos filhos, os genitores possuem o papel fundamental para o bom desenvolvimento da criança.
Conforme destaca a professora Maria Berenice Dias: O afeto ganhou status de valor jurídico. Tornou-se o elemento balizador e catalizador dos vínculos familiares e sua base de sustentação.[4]
Com isso afirma o doutrinador Velasquez: O abandono e a negligência familiares e a falta de afeto e diálogo também são problemas comuns que afligem os jovens.
Não sendo de espantar que mais de 90% dos adolescentes infratores internados provenham de famílias bastante desestruturadas, marcadas por agressões físicas e emocionais, problemas psiquiátricos e pela ausência das figuras paterna e materna, seja pela rejeição pura e simples, seja pela morte ou doença, muitas vezes causados também pela violência urbana. (VELASQUEZ, 2007, on-line).[5]
A ruptura do afeto, e a ausência de cuidado entre pais e filhos, podem provocar consequências psicológicas que comprometem de forma total o futuro da criança.
A primeira situação que apareceu no judiciário sobre a indenização do abandono afetivo foi em 2003, no Estado do Rio Grande do Sul, no qual o judiciário condenou um pai a pagar ao filho uma indenização no valor de 200 salários mínimos.
Nessa ação o filho alegou que o pai somente pagava a pensão alimentícia e nunca cumpriu com o seu dever de pai, de uma convivência familiar para o seu bom desenvolvimento enquanto criança.
O fundamento de indenizar encontra arrimo, no qual a educação, abrange a convivência familiar, onde são questões que envolvem o amor, o afeto, o respeito e a dignidade que são responsáveis para a vida da criança.
Além dessa decisão, outra situação que ganhou destaque foi a situação de uma filha que na via judicial conseguiu retirar o sobrenome do pai em razão do abandono afetivo e material.
Na ação, a filha alegou que a manutenção do sobrenome trazia constrangimento e sofrimento e afrontava os direitos constitucionais à personalidade e dignidade. [6]
Em primeiro grau, o pedido foi julgado improcedente. Ao reformar a decisão, o relator, desembargador Donegá Morandini observou ter ficado provado o rompimento do vínculo afetivo entre pai e filha.
O ilustre doutrinador Rodrigo Cunha, foi o criador da tese do abandono afetivo, ao estabelecer a responsabilidade civil pelo abandono afetivo, ele destaca: [7]
Abandono afetivo é o não exercício da função de pai ou mãe ou de filho em relação a seus pais. Tal assistência para com o outro é uma imposição jurídica e o seu descumprimento caracteriza um ato ilícito, podendo ser fato gerador de reparação civil”.
Na mesma linha de raciocínio, Maria Berenice Dias afirma que o abandono afetivo consiste na omissão paterna em exercer encargos decorrentes do poder familiar, gerando ao filho danos emocionais.[8]
É de fácil percepção que o papel materno e paterno é indispensável para o crescimento da criança, e quando os pais se tornam omissos em relação ao dever de cuidado e carinho, esse ato acarreta inúmeras consequências na vida da criança ou do adolescente.
Para o criador na psicanálise, Freud: “Esta influência parental, naturalmente, inclui em sua operação não somente a personalidade dos próprios pais, mas também a família, as tradições raciais e nacionais por eles transmitidas, bem como as exigências do ambiente social imediato que representam. (FREUD, 1937-1939)”.
Quando a relação entre pais e filhos se quebram tudo começa a refletir de forma negativa na vida da criança, na vida adulta essa criança irá levar consigo sequelas psicológicas.
Todavia, no mundo jurídico, conforme destaquei os pais tem o dever de cuidar dos seus filhos, o papel dos genitores não se restringe somente o pagamento da obrigação alimentar, é muito mais que isso, é necessário ser presente na vida do filho.
Por Priscila Alves
Capa: FreePik
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 14ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 77.
[8] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 416.